segunda-feira, agosto 2

Notas de Clara

 Os olhos azuis dele a deixavam tonta. Era amor? Era ódio? Era a nova dieta que ela estava seguindo?
 Não. Não era nada disso, coitada. Era desejo. Azul lembrava roxo, que lembrava amoras, que lembravam morangos, que lembravam doce, que lembravam calda, que lembrava sorvete. E ela estava sem comer sorvete há mais de três semanas... Ela não era louca, nem um pouco. Que é isso, ter vontade de pular em cima de um cara, arrancar os olhos dele fora e começar a mastigar era uma coisa normal.... Oh, mas é claro que, agora, ela está na Solitária, portanto, não temam.

 Não sei exatamente quando foi que ela começou a surtar daquele jeito, mas quando a conheci, ela ainda era normal, acreditem. Tudo bem que eu nunca entendi o por que dela ter mãos-de-jazz enquanto dormia, mas não vinha ao caso. É. Não vem ao caso também, que a conheci quando ela tinha apenas dois anos... Enfim, ela estava completamente insana, descontrolada, com uma TPM que nem um santo aguenta. Era mais um dia normal, igual a todos os outros. O professor tarado de quimica explicava para os peitos de Mariana a ausência da letra J na tabela periódica, enquanto Juliana e Bruna trocavam bilhetinhos sobre Lucas, o pegador da sala. Eu observava tuo de um jeito passivo, mascando meu chiclete há muito sem gosto. Virei-me vagarosamente para Pedro, com ar vulgar. Estava cercado por Lisa e seu grupinho feminino. Dei um sorriso de cumplicidade para Gabriel, enquanto ele rabiscava desenhos deformados das garotas na banca.
 Ela era minha melhor amiga. Nunca havíams nos desintendido. Josh se aproximou de mim, segurando uma de suas engenhocas.
- Oi, Clara - ele disse, sorrindo.
- E aí, Josh? - Não que o odiásse, mas também não era um dos meus melhores amigos. - O que tem para nós hoje?
- Ah, essa você não esperava. - Ele me olhou, sugestivamente. Comecei a temer o que era. - Não tenho nada, é só meu caderno ipermeável.
- Entendo. - Falei, desviando o rosto.
 Avistei, lá perto, minha amiga, filando um cigarro de Jéssica. O professor nunca dava a mínima para isso. Sempre tentei questionar, mas na Blitzkrieg Bop High School ninguém ligava. Ninguém jamais ligou, ninguém percebeu que Rebeca era doente. Simplesmente, ninguém se importava com sua saúde mental. Ninguém ao menos se importou quando estávamos cursando o quarto ano e ela dessecou um rato. Estavam todos mais preocupados com alguém que tropeçou em uma mochila.
  Acenei um pouco para ela, seus olhos estavam ligeiramente avermelhados. Rebeca me lançou um olhar estranho e ergueu uma sobrancelha, sorrindo de um jeito arreganhado. Estava vindo em minha direção, meio irritada, meio louca. Demorei tempo demais para perceber que não estava sorrindo de fato e que estava segurando um estilete. Demorei mais tempo ainda até ver que o estilete que ela segurava não estava melado de tinta vermelha. Mais uma eternidade para ver que Jéssica estava desacordada. Meu pai tinha prometido me comprar óculos novos.
 Meu grito abafado atraiu a atenção de Rodrigo, enquanto o pulso de Rebeca se aproximava cada vez mais de meu estômago. A sala inteira me pareceu estar girando. Meu sangue parecia ferver em minhas veias. Talvez fosse combustão instantânea. Ou talvez realmente estivesse acontecendo. Em questão de segundos, Elisa e Lucas estavam ao meu lado, segurando-me pelos ombros, de maneira firme. Fui levada para longe de minha amiga, minha cabeça latejava.
 Acordei em um quarto branco, com roupas sintéticas. Minha visão estava um tanto turva, tubos perfuravam meus braços e um líquido fazia um barulho insuportável de goteira. Me ouvi perguntar onde estava. Alguém entrou na sala. A luz quase queimou meus olhos. Alguém se aproximou de mim e me disse que tudo aquilo era para meu próprio bem. Fui sedada. Não sentia mais nada.
 Ouvi um cochicho rápido e doentio soar em meus ouvidos. Nada estava bem agora.
 - Teve sorte em escapar viva, Clara. Muita sorte.
 Apaguei por completo, já não sendo capaz mais de nada. Nem de fugir do que estava prestes a vir.
[CONTINUA]

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