quarta-feira, fevereiro 19

Poesia

- Escreveu um poema para ele?
- Não. Só escrevi; o poema fez-se por si mesmo.
- Lhe agradou?
- Sequer imagino, se sim, se não... Não tomou conhecimento dos versos.
- Ora, a troco de quê?
- Ele não será o último a ignorar palavras; nem foi o primeiro, também.
- Então fez outros poemas?
- Não. Só escrevi; a poesia explorou suas próprias formas.
- Poemas têm forma?
- Poesia, você quis dizer?
- Há divergência?
- Alguém certa vez me explicou que poesia é o acelerar do pulso ou do punho, a emoção pura, simples, quase translúcida. Poema é texto. Poesia é vida.
- Vida?
- Que mais poético há, se não a vida?
- Poesia é beleza? Não há beleza no amontoado de parágrafos tecidos que tenho à frente. Veja só esses poemas todos. Seus remetentes não têm ideia de sua existência. Jamais a terão!
- Não se trata de poema, mas de poesia, e a poesia foi verdadeira em cada traço curvo de letra unida a letra.
- Planeja guardar sua poesia em segredo.
- Me insulta! De forma alguma, poesia não deve ser secreta. Deve espalhar-se apressadamente, a fim de tocar cada coração a seu alcance.
- O que fará com todas essas palavras?
- Levarei comigo.
- Em pasta? Nada servirá a tantos papéis!
- Ora, por que pensa em papéis? Pretendo carregar poesia em meus traços, em meus gestos, em meu ser. Quero ser poesia.
- Sendo poesia, entregará aos destinatários estas frases compostas?
- De forma alguma...
- Para eles escreveu, a eles nega a escrita?
- É tolo. Não percebe?
- O quê?
- Escrevi para mim mesma, para mais ninguém. Essa poesia é só minha, e de mais ninguém.
- Pensei que fosse espalhá-la em sorrisos!
- E vou! E todos terão um pedaço de mim dentro de si. Um pedaço só meu, de mais ninguém, confiado aos cuidados do hospedeiro.
- Como cuidar de parte que não dele próprio?!
- Não sabe? Com poesia...

Beijocolates,
#V

terça-feira, fevereiro 4

Três Pontos

Gostosa mergulhou os pés na piscina aquecida e surpreendeu-se com a memória distante que voltou a lhe perturbar: o calor de dois corpos na água gelada, o beijo intercalado pelo bater de dentes. Suspirou, pensativa, e voltou a atenção aos amigos dispostos pelo gramado.
O coração de Desengonçada vagava por uma cena similar, de natureza igualmente sigilosa. Pousou os olhos sobre Babaca e deixou-se abater por arrepios que eriçavam os pelos de sua nuca. Os risos extravagantes chamaram-na para a realidade, por mais que desejasse ainda vagar por seus segredos.
Um sorriso tímido formou-se no rosto de Gostosa, delineando a distração prazerosa que tomava seus devaneios. Encontrou um brilho conhecido nos olhos de Desengonçada, mas evitou encarar o ponto em que eles estavam fixados.
Babaca ergueu-se, sem sequer pedir licença, e afastou-se dramaticamente do pequeno grupo. Desengonçada remexeu-se, incomodada; "Deixe ir." Gostosa engoliu em seco, propositadamente indiferente, sem anular a confusão aparente de Desengonçada. Esperou pouquíssimos minutos antes de declarar procura e lamentou a companhia de Desengonçada.
Babaca era bastante esquisito - sempre foi e, provavelmente, sempre seria. De repente, tinha o saco cheio com toda aquela felicidade que não lhe pertencia. Observava o pouco movimento do breu noturno quando uma voz doce, falha e aguda o interrompeu: "Não seja um esquisitão!"
Não era o timbre correto, pois ele sequer titubeou sobre os pés. Permaneceu imóvel, encarando lamparinas distantes no céu - adorava contemplar estrelas. Só depois de muito esforço em vão, Desengonçada calou-se.
Gostosa aproximou-se vagarosamente, sem jamais balbuciar qualquer coisa. Lembrou-se de um determinado momento que seguiu uma confissão de sonhos comuns, e sentiu as mãos masculinas sobre as suas.
Um mal estar tomou o corpo de Desengonçada enquanto acompanhava a imobilidade dos dois. Por que Babaca não lhe dava uma chance, depois de tudo o que já haviam vivido juntos, depois de tudo aquilo?
"Vamos sair, está frio aqui" - o maxilar de Gostosa estava travado.
"Não quero sair, quero ficar com você."
Os pensamentos de Babaca estavam embaralhados. Ele sentiu Desengonçada ausentar-se sem pronunciar palavra e assim permanecia ainda. Não estava orgulhoso de suas ações passadas. Deixou os braços caírem ao lado do tronco ao fim do enlace de Gostosa, sem se incomodar muito com qualquer coisa. Enamorado dos vestígios de luz morta inertes dispostos ao léu pela infinitude do universo, admirava a pouca relevância de todos os problemas que os cercavam.
As maçãs faciais de Gostosa tornaram-se rubras ao recordar um desastroso beijo final - ah, se soubéssemos quão importantes eram os últimos feitos...
"Tudo bem?" Gostosa enfim rompeu o silêncio.
Desengonçada não entendia o que falavam, mas a abertura que Babaca dava à outra a escandalizava. Era a ela, e não a Gostosa, que ele devia revelar seus pesares. Moveu-se com cautela, temendo que a descobrissem, e esperou testemunhar o que viria.
Veio. Machucou mais do que Desengonçada previra. Recuou, escondendo lágrimas entre arbustos, e preparou-se para retornar ao gramado. "Ela o alcança sem esforço..."
Gostosa retribuiu o toque de lábios. O amara tão desesperadamente... e não mais. As bocas clamavam calmaria em meio à tempestade. "Não mais, não mais." A percepção daquele olhar a assaltava constantemente, a incomodava. Desmanchou o beijo; precisavam voltar.
Gargalhadas atraíram a atenção de Desengonçada ao casal que dirigia-se a ela e não pôde aguentar mais um segundo sequer. Levantou-se de imediato e esperou a umidade surgir em sua face.
O conforto não saudou Gostosa. Sentia o erro gritar dentro de si, mártir. Quão distantes estavam as estrelas de suas mãos? Por que não as podia tocar? Aquele que mais amava saiu de seu campo de visão, seguindo aquela que ele amava. Estavam todos preocupados com Desengonçada, e o bom humor de Babaca esvaíra-se - o que tinha feito, depois de tudo aquilo?
Gostosa mergulhou os pés na piscina aquecida e surpreendeu-se com a epifania sobre ela própria. Dedilhou a água e acarinhou seu ego, desprendendo-se do tempo de então. Viajava por súplicas de amor, traições reveladas e abraços reconfortantes. Imaginou como seria agradável ser abraçada e contentou-se pela inexistência de braços dispostos a tal. Em uma historia em que o amor da desengonçada pelo babaca não é correspondido, a culpa não é dele ou dos hábitos pouco atraentes dela, mas da gostosa que não deixa de mais facilmente conquistar o babaca.
Os soluços de lástima ecoavam em algum lugar. Gostosa só podia ouvir a própria respiração e sentir o afago de seus sonhos.

"Claro, ela tem tudo aquilo, mas é isso mesmo que você quer?" - Adele

Beijocolates,
#V